Acabei de assistir ao filme “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles, que se baseou na obra homônima escrita por Marcelo Rubens Paiva, que eu já tinha lido por volta de 2016.
Confesso que nunca imaginei que fariam um filme baseado nesse livro.
A história, embora muito comovente, não é uma história de ação, de grandes movimentos e que poderiam gerar cenas dinâmicas, que poderiam atrair grande parte do público de hoje. Não tem nada a ver com outras histórias sobre o mesmo período que já foram retratadas em filmes, como O Que é Isso Companheiro (1997, Bruno Barreto), Lamarca (1994, Sérgio Resende) e Marighella (2019, Wagner Moura). E é esse o motivo de ela ter me atingido de forma tão profunda. Vou explicar.
Sendo pastor há 30 anos, nunca tinha visto evangélicos defenderem abertamente pena de morte, torturador e até a volta da ditadura militar. Se acreditavam nisso, o faziam apenas em seus pensamentos ou no máximo em suas casas.
Infelizmente, desde meados de 2010, tenho visto uma mudança muito grande no padrão de pensamento dos evangélicos no Brasil. Desde uma frieza com os pobres até uma ausência de indignação com a pobreza. Passaram a acreditar que a culpa do pobre ser pobre é de sua falta de fé e a razão da pobreza é o fato de o Brasil não ser “do Senhor Jesus” e não ter um “governo de um justo”. Uma defesa assimétrica da tal “família tradicional” no âmbito político, cobrando de pessoas de fora da fé cristã comportamentos da fé cristã e se esquivando de ser voz profética para dentro da Igreja, deixando de denunciar nossas mazelas. O ápice dessa tragédia, foi eleger um político ímpio como seu “messias” e “representante dos valores cristãos da família”, criando o que já chamei de “cristianismo freestyle bolsonarista”. Quem não aceitou essa imposição, como eu e diversos outros pastores, fomos chamados de “comunistas”, “petistas” e merecedores de qualquer dissabor, seja nessa vida ou no porvir. Agora, vem o filme.
Rubens Paiva não era comunista. Longe disso! Era um trabalhista, filiado ao antigo PTB, que tinha como fundamento ideológico a Doutrina Social da Igreja (Encíclica Rerum Novarum), adaptada pelo cristão católico Alberto Pasqualini, ideólogo do trabalhismo. Rubens também era muito bem casado com Eunice e pai de cinco filhos.
Eunice é um capítulo à parte, pois todo o filme é a partir dos seus olhos. Pacificadora, agregadora, mansa e cheia de amor pelo marido e seus filhos. Abdicou de uma vida profissional para ser mãe, criando seus filhos com zelo e carinho. Rubens também é retratado por seu filho como sendo um pai amoroso, carinhoso e presente. Ele já tinha abandonado a política, tendo voltado a trabalhar como engenheiro, dando a sua família um padrão de vida na linha da classe média alta carioca. Enfim, uma família tradicional, dentro dos padrões defendidos pelos atuais ditos cristãos, que foi impiedosamente destruída por um regime exaltado pelo “messias” daqueles que eu chamava de “irmãos” e que agora enchem meu espírito de nojo.
Como imaginar que esses atuais “cristãos conservadores” e “defensores da família tradicional” e da “liberdade irrestrita de expressão” podem desejar a volta de um regime que prendeu sem acusação formal uma mãe e uma filha de 15 anos, a primeira por quase uma semana, deixando seus filhos em casa sob a companhia de militares delinquentes, torturou e matou um pai de família, sumindo com seu corpo e esfacelou uma família inteira, que apenas teve a certidão de óbito de seu pai mais de 20 anos depois?
Confesso algo que dói meu coração e que não sinto o menor orgulho: se no dia de hoje, quando ainda estou afetado emocionalmente pela via crucis de Eunice Paiva e seus filhos, tão bem interpretada por Fernanda Torres, um dito “irmão” chegasse perto de mim e defendesse a ditadura, como já presenciei vários fazendo, eu esmurrava o rosto desse ser. Nunca fiz isso em minha vida, mas faria no dia de hoje. Como sei que Deus é amoroso e que não permitiria nenhuma tentação que eu não pudesse suportar (I Coríntios 10:13), acredito que isso não vai acontecer hoje, pois com certeza eu sucumbiria.
Viva a Democracia! Abaixo a Ditadura Militar!