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Semipresidencialismo: os Podres Poderes e o Preço do Populismo

Semipresidencialismo: os Podres Poderes e o preço do populismo

Sim, vou iniciar este texto com um poema de Caetano Veloso, e se isso for motivo para você sequer ler o artigo, pode passar para o próximo. Na genial Podres Poderes, lançada em 1984, um compositor indignado bradava, em tom quase profético – no real sentido do profetismo bíblico: “Será que nunca faremos senão confirmar/A incompetência da América católica/Que sempre precisará de ridículos tiranos?” No Brasil de 2022, onde por muito pouco não repetimos os tiranos sul-americanos do final dos regimes militares, vivemos agora a polarização perfeita entre dois demagogos que, embora distintos em muitos aspectos, são tragicamente complementares.

É desse país paralisado, dividido e incapaz de crescer que surge um novo tipo de debate, que tem tudo para ser mais um blefe do Congresso, mas que, aqui e ali, já começa a ser encarado com seriedade. O novo presidente da Câmara, Hugo Motta, um paraibano eleito por um espectro tão amplo de partidos que vai do PT ao PL, passando pelo centrão que é o seu verdadeiro núcleo de poder, dá respaldo à Proposta de Emenda Constitucional do deputado Luiz Carlos Hauli (Podemos-PR). A PEC propõe substituir o presidencialismo pelo semipresidencialismo – um híbrido que existe oficialmente na França e Portugal, mas também em locais que não são exatamente um primor de estabilidade política, como o Congo, a Síria e os territórios palestinos.

Tecnicamente, no semipresidencialismo o presidente continua sendo eleito pelo povo e mantendo algumas funções executivas, mas divide o poder com um primeiro-ministro e um conselho de ministros, que respondem diretamente ao Congresso. Se aprovada, a mudança seria a cartada definitiva de um Parlamento hipertrofiado em suas atribuições e em franca disputa com o STF, diante de um Executivo federal que se mostra incapaz de exercer qualquer tipo de liderança – muito menos o papel de poder moderador que, na Constituição de 1824, cabia ao monarca.

Mais do que culpar elites retrógradas e gritar “golpe” – como se as elites se ocupassem de coisa diferente desde o Brasil colônia –, caberia ao governo um necessário mea culpa. O movimento do Congresso não nasce do vácuo: ele é fruto direto da inércia de um governo que, em vez de enfrentar os duros deveres de governar, dedica-se a jogar para a plateia e a transferir suas falhas para terceiros. Não faz muito, diante da insatisfação da Faria Lima com a questão fiscal, o presidente da República resolveu culpar os gaúchos por seu insucesso, sugerindo que a tragédia climática no Sul inviabilizou o superávit.

Em política, como diz o surrado bordão, não existe espaço vazio. Se o governo não lidera, alguém se sentirá impelido a fazê-lo. E duas forças disputam esse espaço: um Supremo Tribunal Federal que, vestindo a toga de guardião da democracia, é acusado de avançar sobre liberdades individuais, e um Legislativo que, com o controle real do orçamento, já desfigurou por completo a capacidade executora do Executivo. Desta refrega surge um STF que legisla, um Legislativo que executa e um Executivo que pode posar de vítima, acusando os outros dois de não deixá-lo governar.

Empossado em seu terceiro mandato, Lula imaginou que bastaria reeditar os dois períodos anteriores: distribuir ministérios identitários aos setores mais radicais de sua base, garantir emendas parlamentares e embarcar em turnês internacionais. Mas o mundo de hoje é mais complexo do que o de quinze anos atrás, e a estratégia se revelou ineficaz. O Congresso, que viu nascer na era Bolsonaro as emendas impositivas e as emendas especiais – o famigerado “orçamento secreto” –, tomou gosto pelo poder de destinar recursos. Agora, não basta mais a troca de cargos por apoio: há deputados que simplesmente não veem vantagem em integrar ministérios e dividir desgastes com um governo errático.

É possível que, dentro do Congresso, o semipresidencialismo seja visto como uma forma de garantir um governo minimamente funcional, imune às excentricidades populistas do outro lado da Praça dos Três Poderes. A proposta pode ser um arroubo golpista? Pode. E não seria novidade. Sempre que se cogitou o fim do presidencialismo na história republicana, foi para reduzir os poderes de quem havia sido eleito para governar. Foi assim em 1961, quando a solução salomônica garantiu a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio, e novamente na Constituinte de 1988, que flertou com o parlamentarismo, mas acabou consagrando o presidencialismo. O plebiscito de 1993 reafirmou a escolha: o presidencialismo venceu de lavada.

Sim, há razões para suspeitar das intenções do Congresso. Mas atribuir essa ideia apenas ao apetite parlamentar por mais poder seria desonestidade intelectual. A tempestade perfeita foi gestada nos últimos anos, quando Bolsonaro foi eleito como negação a Lula, e Lula foi eleito como negação a Bolsonaro. O resultado é este: um país em permanente campanha, onde se governa por narrativas e hashtags, e onde, no vácuo de liderança, o semipresidencialismo aparece como solução.

Nesta América dos anos 2020, cada vez mais evangélica do que católica, tão diferente e tão igual aos anos 1980 de Podres Poderes, podemos dizer que os Poderes apodrecem quando ultrapassam as suas atribuições. Mas apodrecem ainda mais quando ninguém parece disposto a exercê-las.

Cláudio Moreira
Jornalista, Teólogo, Servidor Público e Professor de Sociologia.

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