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POLÍTICA COMO HERANÇA: O FIM DA DISPUTA DE IDEIAS?

POLÍTICA COMO HERANÇA: O FIM DA DISPUTA DE IDEIAS?

Desde 2014, o establishment financeiro brasileiro acalenta a fantasia de um retorno ao equilíbrio político idealizado: um embate entre um petismo domesticado, que já se converteu ao liberalismo “woke”, e uma social-democracia lavada, que substitui a direita ausente. Era o tempo da paz dos juros altos, do controle institucional absoluto e da ilusão de que a democracia se resolve sem povo – ou, ao menos, sem o povo que vota “errado”.

Hoje, esse projeto encontra obstáculos formidáveis. Mesmo com o Supremo Tribunal Federal operando como ator político ativo, empenhado em expurgar judicialmente todo um campo ideológico — processo que os lulistas sequer tentam disfarçar, chamando abertamente de “criminalização do bolsonarismo” —, o Brasil real não cabe mais nesse tabuleiro de xadrez montado entre a Faria Lima e Brasília.

O mercado financeiro tem, sim, seus candidatos dos sonhos. De um lado, Fernando Haddad: educado, alinhado com os dogmas do Banco Central, comprometido com a ortodoxia fiscal e incapaz de gerar entusiasmo popular. De outro, Tarcísio de Freitas: técnico, palatável à direita civilizada, e suficientemente fiel aos interesses da elite econômica para não ameaçar seus ganhos obscenos com os juros mais altos do mundo. Ambos, no entanto, compartilham um pacto silencioso: manter o Brasil em marcha lenta, desde que os bancos sigam acelerando nos lucros.

Mas há dois fantasmas que não desaparecem. Lula e Bolsonaro, os dois maiores líderes populares da história recente, ainda dominam o imaginário político nacional. A aposta da Faria Lima em Tarcísio esbarra num dilema: Bolsonaro tem os votos, e não parece disposto a entregá-los de bandeja. Tornado inelegível e com o cerco jurídico se fechando — agora com risco real de prisão —, o ex-presidente resiste às pressões para ungir um sucessor. Sua desconfiança crônica da classe política o impede de articular alianças duradouras. Nas duas campanhas presidenciais que venceu, escolheu generais como vices, rejeitando políticos profissionais e sabotando qualquer coalizão institucional que pudesse protegê-lo.

Mesmo agora, diante do esvaziamento de seu capital político formal, Bolsonaro resiste a chancelar Tarcísio, Nikolas Ferreira ou qualquer outro correligionário fiel. Ele olha para dentro de casa – literalmente. A figura que mais empolga seus instintos é Michelle Bolsonaro: bonita, carismática, eficaz na retórica religiosa e, sobretudo, capaz de mobilizar com autenticidade o eleitorado evangélico. Ao contrário de Jair, Michelle é uma evangélica “raiz”, formada nos púlpitos pentecostais, com domínio do discurso e da estética que movem essa base. Ainda sem experiência administrativa, mas com forte apelo popular, Michelle desponta como um trunfo emocional e simbólico, talvez o único capaz de manter a chama do bolsonarismo acesa sem o próprio Bolsonaro na urna.

Se o mercado insistir em Tarcísio sem a bênção de Bolsonaro, corre o risco de lançar um candidato sem alma, que poderá ser engolido por um centro renovado — ou, pior, derrotado por uma primeira-dama.

Sim, primeira-dama. Porque do lado petista, a ala mais leal a Lula, preocupada com o fracasso técnico de Haddad na Fazenda e a perda de identidade do governo, já articula um embate espelhado: Michelle versus Janja. Esta, enredada em relações com a classe artística, com os coletivos identitários e os think tanks da pós-modernidade, poderia tentar disputar a narrativa de “nova política”. Mas Janja sofre rejeição crescente dentro do próprio governo. Sua insistência em protagonizar viagens internacionais, em se impor em agendas diplomáticas e em se colocar como co-governante irrita ministros, parlamentares e dirigentes de esquerda.

Com a popularidade de Lula em queda e a desaprovação batendo 53,7%, segundo a pesquisa AtlasIntel/Bloomberg divulgada nesta sexta-feira (30), a aposta em Janja soa ainda mais arriscada. Em um governo que já começa a exibir fadiga de material antes mesmo do segundo aniversário, lançar a primeira-dama como sucessora parece um movimento desesperado — ou desconectado da realidade política. Ainda assim, como os votos da esquerda pertencem a Lula, se ele bater o martelo, a candidata será ela.

Nesse cenário, a disputa que o mercado gostaria — racional, previsível, domesticada — se converte num duelo entre famílias, entre igrejas e ONGs, entre púlpitos e coletivos. A política brasileira, então, poderá ser arrastada ao seu ponto mais surreal: o presidencialismo de casal.

Restaria algum espaço para uma alternativa? Ciro Gomes, sempre citado, continua sendo odiado por lulistas e bolsonaristas com igual intensidade. Sinal de independência ou de inviabilidade? É difícil dizer. Mas a ausência anunciada de Ciro abre espaço para voos-solo, como o do governador goiano Ronaldo Caiado, que tenta se posicionar como “o centro possível”. Ainda assim, tudo dependerá da bênção — ou da ausência dela — dos dois gigantes que insistem em não morrer.

No fim das contas, o Brasil de 2026 pode acabar decidindo entre dois nomes sem trajetória, sem cargo eletivo e com sobrenomes emprestados. E isso diz muito mais sobre o colapso das instituições do que sobre o carisma de Michelle ou Janja. O problema não está nos nomes — está na política que os reduziu a “mitos” e “caras”, peritos em prestidigitação e em semear decepções na vida democrática brasileira.

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