Recentemente, a ministra Damares Alves foi alvo de várias manchetes em jornais em virtude de incluir entre os planos de governo de combate à proliferação de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidez precoce, a abstinência sexual, conforme os preceitos cristãos mais tradicionais.
Eu conheço o pai da ministra Damares, pastor Henrique Alves, pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular. Um verdadeiro plantador de Igrejas. A Damares conheci em 1991 quando eu fui voluntário na missão americana Youth With a Mission (YWAM) chamada no Brasil de Jovens com Uma Missão (JOCUM). Nessa década, ela manteve um relacionamento estreito com os missionários da base da missão em Porto Velho e com duas missionárias bastante conhecidas dentro da missão: Bráulia Ribeiro e Márcia Suzuki, ambas contemporâneas de meu tempo como voluntário na missão. Apresento esse pequeno histórico para que saibam que minha análise advém do conhecimento que tenho do pensamento da ministra e do contexto em que esses pensamentos se formaram.
A Jocum, embora não seja uma igreja, é uma missão com algumas regras de fé que transcendem as denominações evangélicas. Sua missão primaz é espalhar o evangelho de Jesus ao mundo, em todas as partes e para todas as pessoas. Essa é a característica de todas as missões tradicionais e ortodoxas que existiram e existem no mundo. Entretanto, com o passar dos anos, os métodos que a Jocum assimilou em decorrência da forte influência americana a que ela foi submetida, tornaram-se triunfalistas, um outro nome para a teologia do domínio dos neopentecostais. A missão passou a acreditar que deveria formar líderes para assumir posições de destaque em todas as áreas de influência da sociedade a fim de torná-la uma sociedade cristã, com a moral cristã, ocidental. Esse foi o maior desvio que essa missão que muito contribuiu para os pobres, sofreu.
Nesse contexto, surge uma amizade entre a ministra Damares e missionárias que atuavam entre os índios na missão. Damares, como pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular e posteriormente, pastora da heterodoxa igreja batista da Lagoinha (da família Valadão), tinha fortes ligações com políticos evangélicos tais como Josué Bengtson (pastor da igreja do Evangelho Quadrangular), atual senador Arolde de Oliveira (dono de rádios e produtoras evangélicas no RJ) e o senador Magno Malta. Essa ligação era extremamente importante para lidar com um problema que a missão estava tendo com a Funai. A Funai, no final da década de 1990, acusava a Jocum e outras ONGs internacionais de agirem ilegalmente juntos aos povos indígenas, particularmente aos índios da tribo Suruwahá. Os problemas se acirraram com o tempo e chegou ao ponto de o MPF ter recomendado a imediata desintrusão dos não índios das terras indígenas dos Suruwahá. Essa amizade da então pastora Damares e os missionários da Jocum foi primordial a fim de que aquela pudesse, com sua influência junto aos políticos evangélicos de Brasília, arrefecer as ações da Funai contra as missões evangélicas. Foi nesse momento que Damares obteve a fama que resultou em sua escolha como ministra do governo Bolsonaro.
O filho do fundador da missão Jocum, David Cunningham, produziu um filme chamado “Hakani – Voz pela Vida” como resposta às ações perpetradas pela Funai e pelo MPF da região norte. O filme/documentário, encenado por indígenas deficientes da tribo Karitiana, conta a história de crianças que morreram e de outras que escaparam da suposta prática de infanticídio do povo Suruwahá. Segundo o MPF, a missão não tinha autorização para filmar crianças indígenas e pediu, em ação civil pública, uma indenização destinada aos povos indígenas por dano moral coletivo, a quantia de 3 milhões de reais. Nesse contexto, o filme tem sua execução proibida e isso se torna um prato cheio para o heroísmo da Damares que faz ampla divulgação da obra como sendo parte de uma luta cultural entre um governo comunista (na visão binária de muitos evangélicos) e o povo de Deus, que quer “estabelecer o Reino de Deus no Brasil, a fim de que o Brasil seja de Jesus”.
Nessa cruzada contra o mal, a Damares aproveitava a oportunidade da proibição do filme e transmitia o documentário nos telões dos mais variados templos evangélicos. Emendava com palestras falando sobre uma pseudo cultura marxista que estava sendo implantada no Brasil, onde desenhos, filmes, novelas e várias outras obras de arte estavam sendo usadas para implantar no país e no mundo uma ditadura cultural marxista e gayzista. Posso afirmar com toda a certeza que a pessoa que mais contribuiu, no meio evangélico, para que houvesse um verdadeiro ódio destes para com os que de alguma forma optam por votar em candidatos de partidos de esquerda ou centro-esquerda, foi a Damares. Seus vídeos foram assistidos em centenas de templos cristãos como uma forma de protesto aos que queriam questionar os princípios da moralidade cristã.
Embalada pela polêmica do infanticídio entre os índios e sua luta contra uma suposta leniência das autoridades para com o assunto, Damares emendou uma guerra atrás da outra, em uma cruzada para impor ao país a moral cristã. Nessas suas guerras, alguns alvos de fato nem existiam, como a guerra que ela, Bolsonaro e o senador Magno Malta iniciaram contra uma suposta tentativa do movimento LGBT de aprovar a pedofilia, ideia sempre negada pelos líderes desses movimentos. Sua última grande guerra, antes de ser alçada ministra do governo Bolsonaro, foi contra a chamada “ideologia de gênero”, onde uma confusão interpretativa deu lugar a uma verdadeira cruzada contra moinhos de vento, tendo como resultado prático a crença no “kit gay” e no vídeo das mamadeiras com o bico em formato de pênis.
Chegamos, portanto, ao momento atual, onde a pastora, auxiliar parlamentar e conferencista Damares Alves chega ao poder através de Bolsonaro, que foi eleito com grande apoio de cristãos mesmo tendo um discurso contrário ao evangelho de Jesus Cristo.
Damares é pastora e é divorciada. Para quem está no meio evangélico sabe que pessoas divorciadas sofrem grande preconceito nas igrejas e geralmente são tidas como liberais ou não muito ortodoxas biblicamente. Além disso, a amizade de Damares com missionárias da Jocum, missão esta que costuma ser vista como mais liberal no que diz respeito aos costumes, fez com que os evangélicos mais tradicionais não vissem a ministra como uma primeira escolha de Bolsonaro para representar os valores conservadores. O próprio senador Magno Malta, que era o chefe direto de Damares quando esta trabalhava em seu gabinete, se surpreendeu com a escolha. A escolha foi resultado da amizade que Damares passou a ter com a Michele, também evangélica, esposa do presidente. Essa amizade nasceu na campanha, quando Magno Malta andava ao lado de Bolsonaro o tempo todo, levando consigo sua assessora Damares Alves.
O quero dizer com tudo isso? Que eu conheço a Damares. Ela não é o que representa ser. Ela não é uma pessoa bitolada, ignara, muito menos despreparada. Quem trabalhou em diversos gabinetes de políticos, independente de sua cor partidária, não pode, de forma alguma, ser confundida com uma néscia. O próprio episódio popularmente chamado de “Jesus da goiabeira” em que ela afirma em mensagem dentro da igreja que viu o próprio Jesus, ela desmentiu de maneira inteligente, ao comparar a sua visão com a visão que uma criança pode ter de um amigo imaginário, um duende, uma fada, etc, em momentos de dor e sofrimento. Ou seja, falando desse forma, fica muito mais tragável e inteligível sua visão. Damares é inteligente, um tipo de inteligência astuta, de quem sabe os meios e os caminhos do poder e como se manter nele. Enfim, ela representa um papel que foi dado a ela e sou obrigado a admitir: ela o faz muito bem! Vou explicar melhor.
As suas falas pinçadas de pregações feitas nas igrejas também não representam de maneira exata o que ela pensa. Uma pessoa que assessora um homem como Arolde de Oliveira, que se diz cristão mas se envolveu em gastos irregulares quando era secretário de transportes do município do Rio de Janeiro, sendo obrigado a devolver (ele e mais 4 empresas e 4 servidores) mais de 21 milhões de reais aos cofres públicos não é uma pessoa afeita a ideias radicais ou fanáticas. Quem sabe lidar com as nuances do congresso, sabe se comportar de maneira que consiga agradar a quem lhe convém e adquire traquejo para isso.
Então, o que pensa de fato a Damares? Quem é a verdadeira Damares? Antes de tudo, posso afirmar por conhecê-la, que ela é limitada teologicamente. Na verdade, nunca ouvi falar que ela tenha cursado uma faculdade de teologia. Entretanto, essa limitação teológica em nada obstrui sua sagacidade para falar aquilo que o povo evangélico gosta de ouvir. Desde os tempos áureos do conhecido “Bruxo Tio Chico”, que fazia conferências contando seu passado de bruxo (o homem mentia despudoradamente), do também famoso pastor Josué Yrion, que provava por A mais B que a Disney era do demônio e tocava disco de vinil ao contrário para mostrar as mensagens subliminares das músicas e do Daniel Mastral, que diziam ser um ex-satanista filho do Temer (desmentido depois), que o povo evangélico gosta de mensagens polêmicas. A sagacidade de Damares enxergou isso e ela foi por esse caminho. Falando sobre ideologia de gênero em desenhos tais como o de Bob Esponja, até dos tão falados “kit gay” já desmentido e proibido, pelo TSE, de ser mencionado, marxismo cultural, pedofilia e vários assuntos que não edificam em nada a Igreja, como diz Paulo em sua segunda carta ao jovem pastor Timóteo, “…virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos…e desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas.” (II Timóteo 4:3, 4)
A ministra Damares tem um papel importante nesse governo, satisfazendo duas necessidades:
1ª Ela é a cota real de evangélicos no primeiro escalão do governo. Pastora, envolvida com várias vertentes do neopentecostalismo, com vídeos no Youtube visto por milhões de evangélicos no Brasil. Ela agrada a maioria dos evangélicos que formam a base do governo Bolsonaro e sua presença é importante para manter essa base.
2ª Ela também é responsável por distrair a imprensa e a oposição (perdida e confusa, diga-se de passagem) para que os verdadeiros mandatários desse governo (generais entreguistas e especuladores, bancos e rentistas ligados ao Paulo Guedes) possam fazer o desmonte do país, com a entrega de seus passivos e de parte de sua soberania aos interesses estrangeiros.
A última distração que foi alardeada pela imprensa e por grande parte da oposição foi seu projeto e suas ideias para prevenir a disseminação das doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez precoce. No melhor estilo “eu escolhi esperar” Damares propõe que a melhor tática para vencer os supracitados problemas é a abstinência sexual pré-nupcial. Se eu ouvisse isso de alguns pastores antigos e sérios que conheço desde a minha mocidade e se esses pastores estivessem falando para a sua igreja, eu respeitaria, mesmo discordando da validade absoluta do método, e entenderia. Mas, se tratando da Damares, que sabe claramente que essa estratégia não funciona e nunca funcionou nem na sua igreja, eu não posso deixar de dizer que ela está apenas representando um papel, pois ela mesma não acredita nisso. Como posso dizer isso?
Eu afirmei aqui que ela tem uma inteligência sagaz e astuta, que ela sabe o que tem de dizer para poder chegar a determinado lugar e que ela faz o que for necessário para manter sua posição. Ela age como um histrião romano, um bufão que cumpre cabalmente as ordens que emanam do principal marqueteiro do governo: Steve Bannon. Ele deu a ela esse papel histriônico onde o que ela fala não se traduz em ações concretas (pois não tem como se concretizar) mas que distrai a plateia para os arranjos que o verdadeiro governo está fazendo de maneira simultâneo às suas falas.
Ela não acredita no que diz por que sabe por sua expertise no poder, onde se concentram as maiores imoralidades (inclusive as sexuais) travestidas pela hipocrisia, que se entre os seus pares evangélicos ocorrem adultérios simultâneos com traições e aleivosias das mais abjetas, como ela vai acreditar que jovens ou adolescentes com todo o tipo de pensamento, filosofia, religião e história de vida vão manter-se castos até o casamento? Pergunto aos jovens casais evangélicos que se casaram há menos de 5 anos: vocês se abstiveram de ter relações sexuais até o casamento? Cuidei e aconselhei inúmeros casais de noivos e posso afirmar que mais de 90% não se abstiveram de qualquer tipo de relação íntima um com o outro. E Damares sabe disso. Se ela achasse que o que está escrito na Bíblia deve ser lido e praticado sem nenhuma contextualização social e cultural, ela jamais, como divorciada, diria que casaria de novo e que, para isso, se inscreveria em aplicativos de busca de pretendentes a fim de alcançar esse objetivo. O texto bíblico nu e cru a proibiria. Vou explicar melhor.
Nos tempos bíblicos, uma menina de 12 ou um rapaz de 13 anos poderiam se casar. Na cultura judaica não existia a adolescência. Um jovem de 13 anos já era considerado adulto. Ele não precisava cursar ensino médio ou faculdade, arrumar emprego, comprar móveis e alugar ou comprar uma casa para se casar. Bastava a vontade dos pais que eles ficavam noivos e casavam em pouquíssimo tempo. Não era difícil um rapaz desse se abster. Vamos mais adiante. Na minha época de jovem crente, era mais fácil que hoje. Um jovem para casar, não precisava ter uma faculdade via de regra. O ensino médio era a regra, pois faculdade era para poucos. Eu mesmo, que casei com 20 anos, casei com o nível médio cursando a faculdade. Precisávamos de pouco para viver. Mas a vida agora está mais complexa. Na igreja, vemos noivados com duração quase de casamento. Alguém acredita em abstinência nesses casos?
E termino dizendo: eu sei que a Damares sabe disso. Ela apenas está representando. E nesse caso, o problema dela não é teológico ou ideológico. É de caráter.
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