Alceu Collares e o “avesso do ódio” como arma política
Na véspera da celebração cristã do nascimento do Filho de Deus, despediu-se dessa existência um gigante que carregava Deus no sobrenome e a centelha divina na palavra e na voz. A morte de Alceu de Deus Collares aos 97 anos leva consigo uma vida dedicada à causa dos menos favorecidos no Rio Grande e na América Latina, e sua vida se confunde e se amalgama com a própria trajetória do Trabalhismo.
Acanhada e envergonhada, a cobertura da grande mídia gaúcha sobre seu falecimento, sem poder confessar o papel crucial que desempenhou na destruição do governo e da biografia do líder trabalhista, e sobretudo sem poder fazer louvor da integridade pessoal e ideológica que combateram brutalmente, centrou os elogios em aspectos aparentemente cosméticos, como o “bom humor” do ex-governador, tantas vezes referido, tanto por aliados quanto por desafetos. Entretanto, sem saber, podem ter feito o elogio à obra mais fundamental de Collares como ator político. Em tempos de conservadorismo empoderado, onde a força bruta judicial é encarada como a única resposta contra uma direita que incorpora a violência e o ódio às minorias como essência de sua atividade política, Collares, mais até do que Brizola, encarnou durante toda sua vida a antítese disso tudo. A reação bem-humorada que desarmava o agressor, não era somente um traço da sua generosa personalidade, mas uma resposta política aos tempos violentos em que governou.
É preciso que se compreenda, com décadas de distanciamento dos fatos, o espanto com que a elite nacional encarou o surgimento de Collares no cenário político brasileiro. Um menino negro e pobre, “filho de pai preto e mãe índia”, como costumava dizer, ex-engraxate e quitandeiro que rompeu as amarras da origem social através da Educação, saindo da formação secundária e da atuação profissional como funcionário dos Correios direto para a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, replicava quase que o mesmo caminho daquele que se tornaria seu mais leal amigo e líder político, filho de agricultores pobres de Carazinho que viu o pai ser degolado como consequência das refregas da Revolução de 1922, foi engraxate e carregador de malas de um hotel da cidade até ser acolhido por um pastor metodista que lhe conseguiu uma bolsa para cursar o primário no Colégio Metodista, cursando o ensino médio no renomado Colégio Júlio de Castilhos e sendo aprovado no vestibular da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi ouvindo os discursos deste engenheiro formado e já um político bem sucedido, chamado Leonel de Moura Brizola, que Collares despertou para a política como ferramenta de emancipação social. Com Brizola governador, aderiu à Campanha da Legalidade, heroico ato de resistência contra o golpismo militar que tentava impedir a posse de João Goulart na presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros.
A ascensão política de Collares foi proporcional ao espanto com que as elites enxergaram aquele personagem desafiador. Os anos de superação da pobreza o transformaram em um leitor voraz, culto, sem perder a essência de comunicador popular. Era preciso compreender que o lugar do negro na cultura brasileira daquele período era o de sujeição permanente ao escárnio. O negro era objeto de chacota na arte de Grande Otelo, Mussum e outros artistas. Collares, com sua voz tonitroante e o ‘bom humor’ com que muitos o descreveram nestes últimos dias, subvertia a ordem da Casa Grande. Agora não era o negro o motivo da piada. Era o negro que ria, e debochava, dos modos e escolhas políticas das elites. Vereador, prefeito, deputado federal, não sofreu, como Brizola ou Sereno Chaise, a violência do exílio ou da cassação, mas manteve-se no Congresso como uma lembrança incômoda do Trabalhismo que os militares procuraram expurgar do debate político brasileiro.
Em 77, foi um dos expoentes do programa político do MDB transmitido pela televisão, juntamente com Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Aldo Fagundes e Alencar Furtado. Defendeu melhorias no salário mínimo e a convocação de uma Constituinte. O programa foi considerado um pretexto para a decretação do AI-5, que causou um recrudescimento no regime militar. Em 79, ainda deputado federal, engajou-se na reconstrução do PTB, cuja sigla foi perdida na justiça para Ivete Vargas, filha do ex-presidente Getúlio Vargas. Participou da fundação do PDT com Leonel Brizola, tornando-se líder da nova legenda na Câmara Federal.
Em 82, aceitou o desafio de Brizola e concorreu pela primeira vez ao Governo do Estado, numa eleição em que Jair Soares, do PDS, acabou sendo vitorioso contra Pedro Simon. Em 85, venceu as eleições para a Prefeitura de Porto Alegre, derrotando figuras como Carrion Júnior, Raul Pont e Vitor Faccioni, marcando a gestão com obras como a urbanização da orla do Guaíba, e enfrentando politicamente o governo do presidente Sarney, a quem chegou a processar por “descriminação política e racial”, por suspender arbitrariamente o repasse de recursos para a capital gaúcha.
A vitória ao Governo do Estado viria em 90, como fruto da grande força popular do Brizolismo e do Trabalhismo. Isso pode parecer absolutamente inimaginável para quem acha que o Brasil começou em 2006, mas é preciso contextualizar que, nos anos 80 e 90 o PT era uma força menor da esquerda brasileira, e o PDT era a grande força progressista do Brasil, com um predomínio praticamente acachapante no Rio de Janeiro, onde o “velho Briza” governava, e no Rio Grande do Sul, de onde ele vinha. Antes de Collares, o PT só tinha alcançado míseros 1,50% dos votos para governador em 82 (com Olívio Dutra), 6,13% em 86 (com Clóvis Ilgenfritz) e 10,16% em 90, quando Collares foi eleito (com Tarso Genro, em coligação com o PSB). Foi no ataque brutal a Collares, ao longo dos quatro anos de mandato, que o PT se especializou na capacidade de fustigar e destruir adversários usando ferramentas de Estado, como CPI’s, para prejudicar seus desafetos políticos. No mandato de Collares, o PT, em aliança com os setores mais conservadores do Estado, do PDS ao PFL, mobilizou todos os mecanismos possíveis para detratar a figura de Collares, e com isso, desidratar o PDT e seu eleitorado, que dali para diante, migrou quase que irrevogavelmente para o PT, que dali para diante se tornaria a força capaz de eleger, nas décadas seguintes, Olívio Dutra e Tarso Genro para o Palácio Piratini, e figurar no segundo turno de quase todas as eleições desde então, com exceção de 2006 e 2022.
Antes ainda da posse de Collares como governador, o CPERS, sindicato do magistério estadual, até hoje aparelhado para servir aos interesses do PT, entrou em greve exigindo reajuste salarial. Foi uma das greves mais longas e infrutíferas da história gaúcha, já que não havia desejo de chegar a um acordo, e sim de fustigar o governante. As polêmicas em que Neuza Canabarro, secretária de Educação e esposa de Collares, se envolveria mais tarde, com a proposta do calendário rotativo, iriam desgastar fortemente o governador.
A partir da denúncia de um empresário que afirmou ter pago propina para sua empresa vencer licitações de obras estaduais, uma CPI foi instalada e indiciou 37 pessoas. O presidente da CPI foi o deputado estadual Flávio Koutzii, que anos mais tarde seria o chefe da Casa Civil de Olívio Dutra. O relator, José Otávio Germano, na época do PDS, o mesmo que em 2023 foi indiciado por corrupção no comando da prefeitura de Cachoeira do Sul, sendo obrigado a renunciar à prefeitura.
A comunhão entre as famílias Marinho e Sirotsky, donos respectivamente da Globo e RBS, agia em dobradinha para fustigar os governos de Brizola, no Rio, e Collares, no Rio Grande do Sul. Humoristas usavam sem pudor algum referências racistas a Collares, e o machismo era praticado de forma despudorada por jornalistas de todos os espectros contra Neuza Canabarro.
Na “Escolinha do Professor Raymundo”, do ultraconservador Chico Anysio, o personagem Aldemar Vigário, interpretado por Lúcio Mauro, disse num esquete de 1993 que seu professor havia sido professor de política para Brizola “e para aquele caboclinho lá do Rio Grande do Sul”. Zero Hora fez circular, em 1992, um grande caderno de reportagens e artigos opinativos machistas sobre Neuza Canabarro, com o título “a mulher que governa o coração do poder” – com especulações cruéis sobre os relacionamentos anteriores a Collares. O mesmo tipo de machismo que hoje é dirigido a mulheres como Janja Lula da Silva ou Michelle Bolsonaro no Twitter e nas milícias digitais de cada facção política, era reproduzido contra Neuza pelo chamado “jornalismo sério”.
O resultado, para o PDT, que nunca mais conseguiu eleger governador no Rio Grande do Sul, foi devastador. Na eleição seguinte, Collares, que teria uma eleição tranquila para o senado, não conseguiu sequer ser candidato, e o representante do partido na eleição de 1994, Sereno Chaise, amargou 5,06% de votos num pleito vencido pelo ex-ministro de Itamar Franco, Antonio Britto.
O governo Collares foi o laboratório onde o PT exercitou pela primeiríssima vez, com absoluto êxito, as práticas de demolição de reputações que mais tarde seriam nacionalmente reproduzidas contra Fernando Henrique Cardoso e todos os adversários do petismo desde então. No Rio de Janeiro, o PT que ficou contra Darcy Ribeiro e seus CIEPs seguiu sendo oposição a Brizola, e teria aprovado um relatório para reprovar as contas de Brizola na Assembleia Legislativa, não fosse uma intervenção no PT do Rio praticada por José Dirceu para viabilizar o apoio de Brizola a Lula na eleição de 2002. Carlos Araújo, que foi deputado estadual do PDT e ex-marido de Dilma Rousseff, ressalta o “udenismo” do PT na época, e a grande injustiça política praticada contra Collares. “Eles foram longe demais. Não se faz assim nem com adversários, que dirá com aliados estratégicos do mesmo campo”.
Naquele tempo, Collares era simplesmente o rosto mais conhecido do PDT nacional depois de Brizola. Se o PT não o tivesse fustigado da forma como fez, teria sido o gaúcho Collares, e não o carioca Carlos Lupi, o sucessor natural de Brizola no comando nacional do partido, e talvez – apenas talvez – poderíamos ter tido um presidente negro no país. Com o deslocamento da liderança do PDT para o berço do trabalhismo de Vargas e Jango, sem dúvida o futuro do próprio partido teria sido outro que não a velha rendição de aluguel ao projeto rentista de um governo cada vez mais “ex-querdista”, agarrado meramente a bandeiras cosméticas de costumes e identidatismos, sem atacar de frente os temas clássicos da economia, como salário, poder aquisitivo, reindustrialização e transformações reais para os trabalhadores.
A todas estas injustiças, Collares, contudo, não reagiu com rancor. A personalidade bem humorada do ex-governador, tão destacada nos panegíricos produzidos pela RBS por ocasião de sua morte, não era apenas um traço da sua psique, mas um testamento político, uma declaração de princípios de alguém que havia entendido como poucos a alma brasileira. Sobrevivente desde os tempos em que foi engraxate em Bagé, sua terra natal, Collares aprendeu a cativar os eleitores comunicando-se com a linguagem do riso, do deboche, da pilhéria. Com sua oratória vibrante marcada por tiradas de efeito, ensinava o povo a rir – não de si mesmo, mas das afetações das nossas elites. Collares riu com o povo, nunca riu do povo – e transformava o palanque em espaço de conscientização de classes, onde se tornava até mesmo poeta. A canção “O Voto e o Pão”, que volta e meia declamava em seus comícios, era uma síntese filosófica do seu pensamento, segundo o qual o caminho para o socialismo democrático era a via eleitoral desprezada pelos comunistas clássicos.
Collares, apesar de sua própria morte, vive. E resiste, no riso insubmisso do povo brasileiro num país onde elites políticas incompetentes se levam muito a sério.
CLÁUDIO MOREIRA
Trabalhista, saído do PDT em 2022, Primeiro presidente eleito do Movimento Cristãos Trabalhistas. Servidor Público, Pastor auxiliar da Comunidade Vida Abundante em São Gabriel (RS).