FUNDAMENTOS ÉTICOS DO TRABALHISMO CRISTÃO
A FÉ CRISTÃ
Introdução
Quando se fala em fé cristã, pode-se estar falando em dois sentidos: um subjetivo e outro objetivo, teológico. O sentido teológico diz respeito ao conjunto de doutrinas e dogmas que compõem o cristianismo como religião, nas suas mais variadas expressões. No sentido subjetivo, diz respeito a fé pessoal, a capacidade de crer naquilo que não é material, aquilo que está fora do campo de visão humano, com esperança e confiança. Ambas expressões de fé fazem parte da cultura de nosso povo e devem ser respeitadas. Nesse sentido, o trabalhismo, como teoria política, é a que mais bem lida com essa fé dupla de nosso povo, conforme veremos a seguir.
A fé cristã como doutrina
A fé no aspecto objetivo, é um sinônimo de credo, ou seja, um conjunto de doutrinas e ensinos objeto da crença daqueles que aderem voluntariamente à determinada religião. Como o cristianismo se tornou cultural nas sociedades ocidentais principalmente, é comum que todos, independente de suas crenças, se autodenominem cristãos. Entretanto, é importante delimitar o alcance da fé cristã, visto que não pode ser confundida com um senso comum, de forma que possamos ao menos saber do que é composta essa fé.
Embora o cristianismo, de maneira geral, seja dividido em diversas denominações religiosas, há um credo em comum que resume de maneira simples a sua fé: o credo niceno-constantinopolitano((Encyclopédia Britannica, “Nicene Creed: alternative title “Niceno-Constantinopolitan Creed”. Disponível em:<https://www.britannica.com/topic/Nicene-Creed>. Acesso em: 10 de jun. de 2021.)). No manifesto do movimento Cristãos Trabalhistas resta claro que o referido credo é a base comum de fé de todos os envolvidos no movimento((Manifesto Cristãos Trabalhistas. Portal Disparada. Disponível em:<https://disparada.com.br/manifesto-cristaos-trabalhistas/>. Acesso em: 12 de jun. de 2021)) e é descrito da seguinte forma:
Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai e de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja, una, santa, universal e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. Amém.((Credo niceno-constantinopolitano. Ano da Fé, Vaticano, IT, 2013. Disponível em:<http://www.annusfidei.va/content/novaevangelizatio/pt/annus-fidei/professione-di-fede.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2021))
A fé subjetiva: a capacidade de acreditar
Em suas mais variadas formas e nas diferentes culturas e períodos históricos a fé se mostra como experiência universal do ser humano. “Todas as culturas e todos os povos tiveram e têm uma expressão de fé religiosa”((CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenometologia da religião. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, p. 09, 2001)). O homem, portanto, é um ser relacional e é nesse campo que entra a experiência do homem com o sagrado, o transcendente, aquilo que não se vê, mas podemos sentir, perceber, tocar com a alma. Essa é a fé subjetiva, a capacidade de acreditar naquilo que não se vê, como bem diz o autor da carta aos hebreus: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem”.(Hebreus 11:1)
Ainda que se deve ter total respeito aos que afirmam não ter fé e não crer em nada, a natureza comum é a fé no transcendente, sendo isso imanente. Portanto, são os que não têm fé que devem fazer a prova negativa da inexistência de um objeto espiritual de fé((What Does Atheism Really Mean? (Craig vs Zindler) (em inglês). Estrelando William Lane Craig e Frank Zindler. Debate entre Craig e Frank Zidler. Presente na lista de reprodução “The Definition of Atheism and Burden of Proof”. Publicado no YouTube por drcraigvideos em 1 de dezembro de 2010. Visualizado em 3 de julho de 2021)). Todas as experiências de governos eminentemente materialistas em desfazer ou suprimir essa fé foram mal sucedidas. Podemos dar o exemplo do mais feroz combate à fé subjetiva perpetrado pelo Khmer Vermelho no Camboja durante a revolução socialista de 1975. Foi feito um projeto de engenharia social em que a fé deveria ser subtraída do povo de maneira violenta, provocando um genocídio de proporções bárbaras, visto que o povo se insurgia contra esse atentado((McLellan, Janet. «5». As Muitas Pétalas da Lótus: Cinco Comunidades Budistas Asiáticas em Toronto 1ª ed. [S.l.]: Imprensa da Universidade de Toronto. p. 137)) à fé genuína de um povo. Não deu certo.
No caso da fé cristã, esta é uma fé que pertence às religiões literárias, as quais colocam em seus textos (a Bíblia e em alguns casos a patrística) aquilo que acreditam ser revelação e esta geralmente está ligada a um personagem que a recebeu e registrou (autores bíblicos e pais da Igreja). Essa fé é sólida e entranhada no tecido social de nosso povo, resistente aos mais vis ataques e ao pós-modernismo imperante em nossa sociedade.
A fé cristã e o materialismo das ideologias políticas((A concepção materialista x idealista , se diferencia da forma como concebe a intervenção antrópica na natureza. Uma diz que vem das ideias e outra da relação matérias))
Um dos grandes desafios das teorias políticas tidas como progressistas é vencer a constante tensão e contradição que podem existir entre a fé, que como dito acima, é tanto uma expressão de credo teológico quanto uma confiança e esperança pessoal no divino, e o materialismo, que vê o mundo sob uma concepção objetiva e concreta.
De forma geral, há uma ideia no meio cristão atual que, se você luta por melhores condições sociais em nosso país e no mundo é por que você não crê em uma escatologia em que o Reino de Deus será implantado aqui na terra de maneira sobrenatural e real, conforme está escrito nas sagradas escrituras ou por que não tem fé suficiente para orar a fim de que o estado de coisas em nosso país mude.
Alberto Pasqualini, cristão e principal ideólogo do trabalhismo, teve de confrontar e enfrentar essa contradição. Em sua argumentação, ele demonstra a dantesca diferença entre o trabalhismo e o socialismo materialista:
O trabalhismo não é, pois, necessariamente, um movimento socialista. Abstraindo das diferentes concepções socialistas – incompatíveis com os princípios cristãos quando têm caráter materialista – e considerando socialismo simplesmente a socialização dos meios de produção, de circulação e de troca, mediante uma planificação da economia, observamos que o sistema seria inexequível num país como o Brasil.((PASQUALINI, Alberto. Bases e Sugestões para uma política social. Porto Alegre, O Globo, 1948))
Nas palavras de Pasqualini, o socialismo, quando tem caráter materialista, ou seja, anti-democrático e baseado na força de uma imposição ditatorial de captura de todos os meios de produção e da propriedade privada, é incompatível com a fé cristã, que se baseia em princípios que vão além da maneira materialista de ver a vida. A fé cristã se baseia na solidariedade, fraternidade e amor, princípios estes extraídos do evangelho e da prática apostólica no novo testamento. Acreditar que, apenas através das ações políticas e governamentais o mundo vai mudar, sem levar em conta a ação voluntariosa daqueles que expressam sua fé em atos objetivos de solidariedade e fraternidade é uma forma desrespeitosa e contraproducente de ideologia política.
A fé cristã e o trabalhismo.
Como dito anteriormente, o principal teórico do trabalhismo era um cristão, o sociólogo Alberto Pasqualini. Para Pasqualini,
A vida só tem expressão, só tem sentido, só tem beleza, quando guiada por um ideal; ideal de bondade, de justiça, humanidade que nos faça compreender as contingências e as misérias terrenas, nos dê forças e coragem para superá-las e nos aproxime sempre mais da perfeição, que só existe fora dos limites humanos, isto é, na vastidão e na glória de DEUS.((PASQUALINI, Alberto. Discurso aos economistas. Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 24 de dez. de 1953))
Esse é o entendimento básico que deve mover nossa fé: ela tem sua expressão prática. A expressão prática da fé é a solidariedade, a fraternidade e o constante desejo daquele que tem a fé em Cristo de ver as pessoas ao seu redor felizes. São Tiago deixa isso explicado de maneira clara em sua carta:
Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso? Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. (Tiago 2:14-17)
São Basílio, um dos pais da Igreja, descreve a situação dos pobres em sua época (séc. IV) como uma vergonha para os cristãos. Ele entendia que sua fé estava arraigadamente ligada à defesa dos pobres e que um verdadeiro cristão não poderia aceitar a exploração e a concentração dessas riquezas, de forma a aumentar a pobreza.
O mar respeita as fronteiras que lhe foram estabelecidas; a noite observa seus limites, mas a pessoa avarenta não respeita nem tempo, nem medida, não observa nenhuma ordem, mas se parece com o fogo que cerca e devora todas as coisas. Vós, porém, se acreditais em mim, escancarai todas as portas dos depósitos, com toda a liberalidade permiti a saída da riqueza. Como um grande rio fecundo, percorrendo a terra por milhares de canais, assim vós, dividindo a fortuna em diversos caminhos para as casas dos pobres.((HINSON, Glen; SIEPIERSKI, Paulo. Vozes do cristianismo primitivo. Sepal, São Paulo, p. 142, 1994))
A fé cristã, portanto, é indissociável da defesa dos mais pobres de nossa sociedade, sejam nossos irmãos de fé, sejam os que Jesus chama de “próximos” (Lucas 10:33-37) e é nesse ponto que a ideologia trabalhista e a fé cristã prática convergem: a defesa de um estado de bem estar social sem rupturas revolucionárias. Essa defesa, decorrente de nossa fé cristã, é respeitando a fé cristã subjetiva de nosso povo. E isso sempre foi assim, quando o trabalhismo já esteve no poder. Um exemplo que se pode citar, ocorreu durante a segunda grande guerra, em que o Brasil era governado pelo trabalhista Getúlio Vargas. Em 1944, durante o desfile dos expedicionários que partiam para a Itália, Vargas perguntou ao cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, qual era a sua opinião sobre o desfile. Dom Jaime respondeu que apreciara, mas faltava os capelães para dar assistência espiritual ao soldado no campo de batalha. Vargas se comprometeu a suprir tal deficiência, criando um serviço de assistência religiosa, através do Decreto-Lei nº 5.573/1944. Seguiram com a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Itália, 30 padres católicos e dois pastores evangélicos((ALMEIDA, Marcelo Coelho. A religião na caserna: O papel do capelão militar. São Paulo: Mackenzie, 2006. Disponível em:<http://www.acmed.com.br/acmednew/acervo/tese_cpl_m.pdf>. Acesso em 10 de jun. de 2021)).
A fé cristã deve ser o pilar que sustenta todas as políticas de saúde universal, educação pública de qualidade, desconcentração de riquezas através de uma política de impostos progressivos, onde os que mais tem pagam mais que os que menos tem. Não existe fé cristã genuína sem a verdadeira e prática compaixão pelos pobres. Tanto a fé subjetiva como a fé objetiva tem de levar em conta que o amor ao próximo, segundo mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo (Marcos 12:33), se expressa em nossa capacidade de ver nosso próximo gozando de condições dignas de um ser criado à imagem e semelhança de Deus, como bem dispõe o manifesto do movimento Cristãos Trabalhistas em seu item 1:
- Acreditamos e afirmamos nossa crença em um único Deus, Criador e Senhor do mundo, que fez os homens à Sua imagem e semelhança. Por ser a humanidade a imagem e semelhança desse Criador, entendemos o valor da vida humana, sua dignidade e que todo nosso esforço nesta terra deve ser voltado para a solidariedade, compaixão e fraternidade para com todos os seres humanos, independente de raça, gênero, idade, crença ou opção política.((Manifesto Cristãos Trabalhistas. Portal Disparada. Disponível em:<https://disparada.com.br/manifesto-cristaos-trabalhistas/>. Acesso em: 26 de jul. de 2021))
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