Ao interpretarem a Bíblia a bel prazer, religiosos passam a usar Jesus e o evangelho como bandeiras bolsonaristas.
Pastor Alexandre Gonçalves
Um dos maiores desafios que se impõem aos teólogos e pastores do cristianismo evangélico é enfrentar no campo das ideias as mirabolantes distorções que afetam a doutrina e a prática cristã.
Antes, essa tarefa envolvia combater heresias (nome dado pela teologia aos ensinos heterodoxos) que afetavam apenas o meio evangélico, com distorções já graves das sagradas escrituras. Hoje, as consequências do não enfrentamento contínuo desses ensinos ultrapassam os arraiais evangélicos e causam danos a toda população, independente de fé ou ausência de fé.
Destaco como uma das maiores perversões do evangelho a teologia da prosperidade. Essa teologia foi a semente que se transformou em uma grande árvore, produzindo toda sorte de frutos podres. Ela nega a realidade do sofrimento humano como consequência das condições naturais, contrariando o que Jesus diz em Mateus 5:45 quando assevera que “…Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”. Nega que a desigualdade é resultado da ganância dos homens e de perversões de governos que nada fazem para diminuir o abismo das diferenças sociais na população.
Esse ensino raso defende que o pobre é pobre por sua falta de fé, que o doente é doente também por sua falta de fé. A vítima se transforma no algoz, sem nenhuma reflexão de conjuntura ou contexto em que estes problemas ocorrem. Acreditam que a solução é individual e que responsabilizar a falta de condições iguais é “vitimismo”.
Essa teologia ressoa de maneira retumbante nas palavras do atual presidente quando diz que não existe fome no Brasil e, por isso, repudia políticas compensatórias que diminuam desigualdades sociais históricas, como as dos negros, por exemplo. Para Bolsonaro e outros adeptos dessa teologia, a concentração de riqueza não tem relação com a pobreza. Ao contrário, os ricos são “abençoados” por Deus e devem, por isso, ter a atenção do estado com subsídios e redução de impostos.
Aliás, o acúmulo de bens deve ser algo a ser perseguido como resultado das “bênçãos” de Deus. Tudo isso aplaudido por cristãos que negam o evangelho de Cristo por puro individualismo e egoísmo. O mesmo evangelho no qual Jesus diz que “a vida do homem não consiste na abundância de bens que possui” (Lucas 12:15) e que não devemos acumular tesouros na terra (Mateus 6:19).
Jesus contrariou esse individualismo claramente. Um dos exemplos está registrado nos evangelhos. Ele ensinou a multidões o dia todo, e a multidão (mais de 10 mil pessoas) estava faminta. Os discípulos foram a Jesus com uma solução individualista: “Manda embora o povo para que possa ir aos campos e povoados vizinhos comprar algo para comer” (Marcos 6:36), ou seja, que se virem cada um por si. Jesus, querendo mostrar o verdadeiro teor do evangelho, disse aos seus discípulos para que eles dessem de comer ao povo (v. 37). Eles ficaram horrorizados com a proposta.
Jesus, então, perguntou quantos pães e quantos peixes havia para dividir com a multidão. Com apenas cinco pães e dois peixes em mãos, ordena que a multidão se sente sobre a grama verde em pequenos grupos (v. 39). De maneira coletiva e jamais individual, o milagre aconteceu e todos se fartaram, sobrando 12 cestos cheios, um para cada discípulo que duvidava dessa estratégia (v. 42 e 43). Jesus nos ensina que parte da felicidade pessoal está em saciar a necessidade do próximo, algo impensável em uma teologia individualista. Mas, como eu disse, essa teologia gerou frutos, e esses frutos se espalharam de maneira rápida em nosso país, atingindo a maioria dos grupos evangélicos.
O tsunami herético neopentecostal foi de tão grande intensidade que conseguiu atingir líderes de igrejas históricas, que orientaram, em carta pública, que os crentes votassem em candidatos que tenham “uma visão cristã de mundo”, “refreiem a representação de ideologias anticristãs em nossos parlamentos” e ainda “repudiem qualquer ideologia que se oponha à mensagem e aos ensinamentos da Bíblia”, reavivando a sepultada (acreditava-se assim) heresia do teonomismo, que é a crença de que a Bíblia, incluindo as leis judiciais do antigo testamento, devem ser cumpridas por toda a sociedade, independente de sua fé. Essa heresia pressupõe que tenho de votar em quem defende a visão cristã de mundo.
O mais interessante é que os que assinam a carta se intitulam “liberais” no sentido político da palavra, o que é um contrassenso porque o liberalismo rechaça que princípios religiosos se misturem com política, além de respeitar toda e qualquer crença e lutar por sua existência. Esses pastores, supostos liberais, advogam que os princípios cristãos devem ser seguidos por toda a sociedade de maneira impositiva, atuando nas três esferas de poder a fim de que sua visão particular seja hegemônica e suplante as demais.
Luta antiga
Lembro-me que no fim da década de 1980, o Christian Research Institute, dos Estados Unidos, abriu uma representação no Brasil: o Instituto Cristão de Pesquisas (ICP). Sua finalidade era combater essas heresias, portanto, criou-se um cadastro de seitas e amplo material apologético a fim de combatê-las uma a uma. O instituto fez um grande trabalho para o público interno das igrejas, denunciando grupos que se intitulavam de fé cristã, mas que tinham práticas totalmente contrárias ao cristianismo.
Destaco um exemplo do trabalho apologético do ICP, que foi o combate ao grupo religioso denominado Testemunhas de Jeová, denunciando seu ensino de proibição de doação de sangue, que é resultado de uma interpretação tosca de versículos isolados da Bíblia. O ICP publicou amplo material, divulgado em todos os meios, inclusive em jornais e revistas, mostrando claramente que essa prática não tinha a ver com o cristianismo e que poderia provocar muitas mortes, inclusive de crianças.
Infelizmente, a defesa teológica do ICP e de outros institutos não foi forte o bastante para combater os primeiros ensinos importados dos EUA e trazidos pelas incipientes igrejas neopentecostais. Enquanto esses erros afetavam apenas o meio evangélico, o dano era controlado. Mas agora as consequências dessas doutrinas transpuseram a barreira evangélica e passaram a atingir a população como um todo em uma onda de anacronismo cultural jamais vista no Brasil.
A teologia do domínio, derivação mais simples do teonomismo, se baseia no pressuposto de que o domínio da terra foi usurpado do homem pelo diabo desde o pecado de Adão. Assim, é tarefa da igreja, dos cristãos, tomarem esse domínio de volta. A estratégia para essa tomada é ter domínio em áreas de influência da sociedade (política, educação, cultura, judiciário, etc), a fim de estabelecer o domínio de Jesus na terra.
Um exemplo inequívoco dessa estratégia de poder foi a criação da Anajure, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que tem como um de seus objetivos defender na sociedade os valores do cristianismo, discutindo os projetos de lei em tramitação no congresso. Recentemente, essa associação conseguiu o compromisso de Augusto Aras, promotor indicado por Bolsonaro e aprovado pelo Senado para ser o procurador-geral da República, com sua carta de princípios que incluem o compromisso com a pauta moral e conservadora cristã da associação.
O objetivo é claro: “cristianizar” a sociedade por meio da influência nos órgãos públicos, hoje à mercê de ingerências religiosas por orientação de Bolsonaro, que já disse que seu próximo indicado ao STF será alguém “terrivelmente evangélico”.
O ‘euvangelho’
A gravidade da situação é tamanha que o evangelho de Jesus foi totalmente subvertido e, em seu lugar, foi criado um evangelho apócrifo que chamo de Euvangelho, um neologismo que aplico para classificar um ensino em que o individualismo, o egoísmo e a vitória pessoal estão acima do bem- estar coletivo e do respeito aos mais simples predicados de humanidade. Tudo isso usando a Bíblia como base, com uma interpretação bastante oportunista, malversada e descontextualizada.
Essa subversão do evangelho simples de Cristo é substanciada na ideia de que devemos escolher um presidente por suas propostas que beneficiem o meu grupo particular e não o conjunto da população. Dessa forma, os evangélicos acabam sendo orientados a votar em quem irá defender suas pautas religiosas e morais, sem observar que essa defesa em nada irá contribuir para diminuir o sofrimento dos mais de 43 milhões de brasileiros que vivem na pobreza. É mais importante ver a igreja ampliando seu domínio sobre o país do que vê-la apoiando projetos que visam diminuir a fome e a miséria.
Lembro de uma situação que ilustra bem esse “euvangelho” como prática nas igrejas. Eu estava pastoreando uma igreja em Balneário Camboriú, norte de Santa Catarina. Um jovem evangélico, aproveitando a grande quantidade de evangélicos na cidade, se dispôs a disputar a prefeitura. Nessa época, eu fazia um trabalho de assistência às crianças que ficavam trancadas dentro de casa, pois as mães tinham de trabalhar e não havia vagas em creches. Sem opção, as mães mantinham seus filhos trancafiados dentro de suas casas a fim de protegê-los dos perigos das ruas.
Algumas vezes, cheguei nessas casas, e a criança estava sem comer e não tínhamos como entrar. Tentávamos passar alimentos por baixo da porta ou por alguma outra greta, a fim de, ao menos, minorar a situação de fome dessas crianças.
Pois bem, o candidato evangélico tratou de reunir os pastores da cidade para ouvir suas reivindicações e obter apoio. Nenhuma das reivindicações tratava do problema da falta de vagas de creche para as crianças. Pediam desde calçamentos para a rua da Igreja até ajuda financeira para a “marcha para Jesus” e o fim da “parada gay” na cidade. Levantei meu dedo e falei das creches. Um pastor de uma tradicional e rica igreja na cidade defendeu que “creches apenas ajudam a desagregar a família” pois com creche “a mulher não cumpre seu papel de mãe”.
Esse é o euvangelho que alçou à presidência um governante com o único fim de defender os interesses individuais da massa evangélica, preocupada com “parada gay” e despreocupada com o drama da falta de investimento em educação pública para todos. Diferentemente do evangelho de Jesus que reparte e não busca seus próprios interesses, esse euvangelho quer juntar para si e apenas busca seus próprios interesses. Um exemplo desses interesses egoístas, capitaneado pelos mercantilistas da fé, foi a exoneração do secretário da Receita Federal Marcos Cintra, após este defender a criação de um imposto sobre as igrejas. Outro exemplo claro do servilismo do governo Bolsonaro aos interesses mesquinhos dos euvangélicos foi a destinação de dinheiro público, cerca de 153,7 milhões de reais por ano, às comunidades terapêuticas religiosas (maioria evangélicas). Para se ter uma ideia desse disparate, esse é quase o mesmo valor gasto anualmente com os 331 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que contam com equipe multiprofissional (com psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e outros profissionais de saúde), bem diferente das comunidades terapêuticas que nem sempre têm estrutura profissional.
A fim de frear a incipiente força do neopentecostalismo, que já trazia de berço essa doutrina egoísta e individualista, em 1974, mais de 2,4 mil líderes evangélicos de cerca de 150 países se reuniram em Lausanne, na Suíça, para discutir a evangelização do mundo. Como resultado desse congresso, foi elaborado o pacto de Lausanne, um documento em que a igreja se arrepende de excluir da evangelização a atividade social pois isso faz parte de seu dever como igreja e que a mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação. Defende também que, nós cristãos, não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam.
Com essa carta de princípios, os signatários estavam declarando que o evangelho não poderia ser egoísta e centrado nas necessidades da igreja e, sim, nas necessidades do próximo.
Para dar um exemplo de como esses ensinos anti-cristãos pularam o muro das igrejas neopentecostais e trouxeram reflexos em toda a sociedade, evangélica e não evangélica, cito uma carta de felicitação pela eleição de Jair Bolsonaro, escrita por um pastor de uma igreja histórica, Mauro Meister, que afirmou sem ruborizar que é a favor da pena de morte para condenados, do direito à autodefesa (uso de armas pela sociedade civil) e que foi “a mão de Deus” que colocou Bolsonaro na presidência, em mais uma interpretação descontextualizada de Romanos 13, texto que foi escrito para uma igreja que vivia sob o jugo do cruel império romano, onde o mínimo sinal de insurgência por parte de qualquer cristão significaria sua morte, sendo esta a preocupação de Paulo.
Será que o citado pastor concorda com a interpretação literal de Romanos 13:3 onde Paulo diz que só quem pratica o mal deve temer a autoridade e quem pratica o bem não tem o que temer? Como explicar a condenação de Jesus à morte? Jesus praticou o mal? E o diácono Estevão, morto apedrejado pelos judeus com a permissão explícita das autoridades de Roma? Ele também praticou o mal? E Bonhoeffer, pastor germânico condenado à morte por Hitler também praticou o mal?
Textos antigos descontextualizados da história e fora de contexto são meros pretextos. Se foi a “mão de Deus” que alçou Bolsonaro à presidência, não estaria o nobre pastor dando um caráter de “ungido de Deus” a Bolsonaro, semelhante aos reis do antigo testamento, que o imunizaria de ser criticado por quem o elegeu, sua base eleitoral cristã?
De onde vocês acham que ele tira esses conceitos? Da Bíblia, óbvio. Pelo menos, da parte em acordo com a interpretação que lhe convém. Como protestante, eu defendo o livre exame das Escrituras Sagradas por todos os cristãos. Essa é uma das bases da Reforma Protestante. Mas não confundamos livre exame com livre interpretação. São ações distintas. A interpretação da Bíblia deve seguir as regras gerais de interpretação de qualquer livro antigo e não sofrer interferências de minhas próprias convicções e, sim, das palavras de Jesus nos evangelhos.
Observe que eu citei as palavras de um teólogo oriundo de uma igreja histórica séria e com excelente formação acadêmica. Aliás, tenho mais convergências com ele do que divergências. Isso mostra o tamanho do problema e do desafio que está diante de nós. O que fazer?
Entendo que de nada adianta que pessoas alheias ao meio evangélico tentem desconstruir esses conceitos. Infelizmente, na mentalidade do povo, a figura do carteiro tem igual ou maior importância que a mensagem contida na carta que ele quer entregar. A voz dessa pessoa, por mais capacitada e bem fundamentada que seja, não encontrará ouvidos aptos a recepcionar seus argumentos. Pelo menos não entre os evangélicos.
O mesmo pensamento tenho de pastores e teólogos conhecidos como “liberais” ou “universalistas”. O teólogo liberal é tido como um eterno relativista dos princípios bíblicos, e o universalista diminui o valor da doutrina da morte expiatória de Cristo na cruz, que é cara ao cristianismo, pois acredita que todos os homens são intrinsecamente bons e, portanto, todos serão salvos ao final, fazendo com que a necessidade de Jesus morrer por nossos pecados seja tacitamente nula. Estes, de igual forma, também não serão ouvidos pela grande massa evangélica.
Como recuperar o evangelho de Jesus?
Pensando nisso, alguns pastores de pensamento teológico ortodoxo que tem apreço à democracia e acreditam na laicidade do estado, dentre os quais me incluo, estão formando grupos a fim de criar iniciativas de combate a esses ensinos pseudo-escriturísticos. Essas heresias têm forma de purismo teológico, mas seu conteúdo é anticristão, contrário ao puro e simples evangelho de Jesus.
Ensinos oriundo de pastores de massa, como o pastor Lucinho Barreto que, em vídeo, faz apologia ao uso da força letal pela polícia com visível alegria; ou como o pastor Augustus Nicodemus que defende de maneira aberta que o cristão pode usar da violência para se defender, contrariando explicitamente o que diz em Mateus 5:39, onde Jesus contraria todo o senso comum da época (e parece que de hoje também) e defende que “…se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”; ou outro como o pastor Franklin Ferreira, um dos mais ferrenhos defensores das teses da extrema direita cristã conservadora comemorando a vitória de Bolsonaro como presidente porque este representaria o conservadorismo cristão e o liberalismo econômico, mesmo sabendo dos discursos anti-cristãos de Bolsonaro a favor de extermínio de criminosos e penas cruéis.
E como se dará esse combate? Usando a mesma base usada pelos que subvertem a sã doutrina: a Bíblia. Fazendo isso, jogamos no mesmo campo e com a mesma bola que eles usam. E qual a estratégia de ação? Está sendo criada uma rede de blogs, canais no YouTube, podcasts e contas em redes sociais a fim de mostrar as incongruências dessas crenças sem jamais desprezar, ferir, humilhar ou depreciar a fé do povo evangélico.
Acredito piamente que, se conseguirmos ao menos desconstruir os gigantes da teoria do domínio (versão neopentecostal) e do teonomismo (versão dos ditos reformados), já valerá o esforço. Por quê? Pelo simples fato de que todos são livres para ter sua fé pessoal. Todos podem crer naquilo que quiserem crer. Como cristãos, podemos crer que o matrimônio é para sempre, na castidade pré-nupcial e, inclusive, na condenação eterna da alma. Isso é direito fundamental de toda sociedade democrática.
Mas jamais podemos trabalhar, desejar, lutar ou planejar que esses princípios de fé pessoal cristã sejam impostos, à força, mediante ascensão de um governo “cristão”, assumidos pelo conjunto da população, composta por variadas crenças, culturas e até o democrático direito de ausência de crença. O verdadeiro cristão acredita que o Reino de Deus e seus princípios são recepcionados de maneira voluntária, por aquele em quem o Espírito Santo trabalhou na alma, tal qual disse o profeta Zacarias: “Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. (Zacarias 4:6).