Sílvio Almeida, o celebrado professor de Direito e Filosofia, principal expoente da tese do Racismo Estrutural no Brasil, já não é mais ministro dos Direitos Humanos.
Um dos intelectuais mais respeitados do movimento antirracista contemporâneo, sua ascensão ao posto de unanimidade foi marcada pelos anos de resistência ao bolsonarismo. No entanto, ele caiu em desgraça após denúncias de assédio sexual, divulgadas pelo coletivo feminista Me Too — ou, mais precisamente, pela ramificação nacional de uma organização com sede nos Estados Unidos. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, figura central no episódio, surge como a suposta vítima. Anielle, que assumiu seu ministério em tributo à memória de sua irmã assassinada, a vereadora Marielle Franco, representa um símbolo de luta cuja trajetória se entrelaça com o crescimento das milícias no cenário político brasileiro.
O fato de a denúncia ter sido levada não a uma delegacia, mas às redes sociais de uma ONG estrangeira, levanta questões que vão além da soberania nacional — um tema ignorado por um governo sem preocupações nacionalistas. A verdadeira questão aqui reside no impacto ao estado de direito. Quando uma acusação dessa gravidade, envolvendo ministros de Estado, é exposta ao linchamento midiático antes de qualquer investigação formal, a presunção de inocência torna-se um conceito teórico, desprovido de proteção prática.
A queda de Sílvio Almeida, resultante de uma denúncia amplificada por uma ONG que teria perdido acesso a recursos sob sua gestão, revela uma lógica perversa de conflitos de interesse. Em um governo onde cargos e reputações estão constantemente em negociação, a sobrevivência no poder depende de com quem se entra em choque. Almeida, conhecido tanto por sua erudição quanto por sua vaidade, parecia atrair inimigos com facilidade. Entre seus desafetos, estava o grupo Prerrogativas, que se vangloria de possuir cerca de 28 representantes no governo e já havia se envolvido em outras polêmicas envolvendo assédio. A relação entre o grupo e Almeida sempre foi marcada por tensões, e sua queda parece ter seguido um script previsível.
Este episódio, lamentavelmente, expõe o ambiente tóxico em que disputas internas são resolvidas por meio de dossiês e destruição de biografias. O identitarismo — a ideologia reinante no terceiro mandato de Lula — revela aqui sua face mais cruel. Se o bolsonarismo, como já escrevi, é uma religião política que mescla conservadorismo evangélico, ocultismo olavista e a violência miliciana, o identitarismo é sua contrapartida laica: a religião dos materialistas científicos e dialéticos, tendo como líder espiritual Janja, a primeira-dama. Quando Janja divulgou uma foto beijando Anielle Franco, o desfecho já estava selado. A conversa entre Almeida e o presidente Lula foi uma mera formalidade; a sentença havia sido proferida, e a fatwa executada. O intelectual que ajudou a construir os fundamentos dessa nova religião política agora sucumbe à mesma teologia que promoveu.
O identitarismo possui características religiosas, mas não de uma religião monolítica, como o bolsonarismo, que apenas recentemente começou a se fragmentar em seitas.
Enquanto outras religiões políticas buscam a unidade, o identitarismo prospera na divisão — entre antirracistas, feministas, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, e outros. Esses grupos, inevitavelmente, entram em colisão quando contratos, cargos e benefícios ministeriais estão em jogo.
Os identitários, por sua vez, costumam desdenhar das religiões populares, como as igrejas evangélicas, vistas como responsáveis pela alienação das massas. Contudo, falham em compreender a lógica dessas instituições. No cristianismo de massas, há um rigor moral, mas sempre há perdão. No identitarismo laico, tudo é permitido — mas o perdão é inexistente.
A ascensão de Sílvio Almeida ao ministério — e, antes disso, ao estrelato acadêmico — deve-se em grande parte ao “cancelamento” de outro intelectual negro, Antônio Risério, um crítico ferrenho do conceito de Racismo Estrutural. Risério ousou defender a existência de racismo entre negros, uma ideia herética para a intelligentsia brasileira. Agora, Almeida enfrenta um processo sumário, sem direito a julgamento justo ou coleta de provas. Em um governo onde dossiês e reputações são consumidos à luz de velas, Almeida vê sua biografia ser arrastada ao Hades, sem que nenhuma voz se levante em solidariedade.
Na mitologia romana, a hybris, ou descomedimento, era um pecado supremo, uma violação da harmonia social. Sílvio Almeida, como figuras mitológicas da antiguidade, encontra-se agora punido por sua própria hybris, ameaçando a mediocridade que permeia o poder. A pergunta que resta é: na batalha autofágica entre os identitários, quem será o próximo?
Cláudio Moreira
Escritor, comunicador e servidor público
Teólogo e Pastor Auxiliar da Comunidade Vida Abundante em São Gabriel (RS)
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