Bolsonaro jamais chegou perto de ser evangélico. Nem mesmo seus padrões morais se encaixam na moral evangélica, visto ele ser uma pessoa que teve vários casamentos, usa um linguajar torpe e defende prática de tortura e morte de criminosos. Isso, definitivamente, vai de encontro ao modo de vida e pensamento evangélico. Podemos dizer o mesmo de Donald Trump, com seus relacionamentos com atrizes pornô. Entretanto, ambos tiveram e ainda têm, em menor força agora, apoio messiânico de grande parte dos evangélicos, meus irmãos de fé. Parece assustador, mas existem explicações para isso.
A primeira tem a ver com a teologia do domínio, majoritária entre os evangélicos dessa geração. Essa teologia, que tem pontos de contato com algumas teologias de Igrejas reformadas históricas, defende que há uma guerra espiritual e cultural para que os valores cristãos não sejam rechaçados em uma nação e mais, para que estes valores sejam absorvidos na cultura de um país, incluindo sua política. Nessa mesma teologia, o velho testamento e a construção do povo de Israel como nação, torna-se um modelo a ser seguido, onde a frase “o Brasil será do Senhor Jesus” é dita como proclamação desse ideário de nação. Nesse sentido, não é necessário que alguém seja cristão para ser ungido por Deus com o propósito de levantar a cultura cristã em um país. No velho testamento temos Ciro, rei da Pérsia, que sendo pagão, adorador de outros deuses, foi ungido por Deus (Isaías 45) para livrar os judeus dos babilônios e autorizar a reconstrução do Templo de Jerusalém. Assim, Bolsonaro e Trump, com todas as suas contradições, envolvendo, inclusive, comportamentos familiares imorais do ponto de vista cristão, são justificados por serem uma espécie de “Ciro, o Grande” para uma parte considerável dos cristãos.
A segunda tem a ver com o tipo de adversário político que se tem a enfrentar. Kamala tem a simpatia da Planned Parenthood, principal associação pró aborto dos Estados Unidos, tendo sido a primeira vice-presidente em exercício a visitar uma clínica de aborto. Quando se tem um adversário cuja conteúdo ou estética é identificado com esses tipos de pautas, por pânico moral ou dever de lutar pela preservação da chamada “cosmovisão cristã”, todos se unem em torno do seu antagonista, seja ele quem for, passando por cima de suas mais visíveis contradições. Com toda a ligação que tenho com evangélicos americanos, visto que a denominação da qual sou pastor há 29 anos tem sua sede no estado do Tennessee, acredito que, a depender do apoio evangélico, Trump está bem confortável com sua atual adversária.
Se você perguntar para os evangélicos aqui no Brasil se eles querem ter saúde e escola pública de qualidade, um transporte público ágil para não ficar 3 horas no trânsito e direitos trabalhistas como férias, eles vão dizer que sim. É dessa forma que a gente consegue se conectar com os evangélicos. Se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, mas que são dominados por um identitarismo de minoria (em seu sentido sociológico e numérico), isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria (em seu sentido apenas numérico). Isso faz muito bem à extrema direita e ela ganha nesse campo. Emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para o campo progressista ganhar alguma eleição majoritária. Porque se for entrar com a luta identitária de minorias, a extrema direita ganha com a força de uma espécie de identitarismo de maioria: o identitarismo cristão. É aí é só saber fazer conta de matemática básica para ver quem ganha.